Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

sexta-feira, dezembro 16, 2005


Fragmento 05


enho diante de mim as duas páginas grandes do livro pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com os olhos cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além do nada que isto representa, o armazém, até à Rua dos Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados regulares a ordem humana e o sossego do vulgar. Na vidraça há ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como o sossego que está ao pé das prateleiras.

Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em que os meus números cuidadosos puseram resultados da sociedade e, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços à régua e de letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes santos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.

No próprio registo de um tecido que não sei o que seja se me abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da Pérsia, que não é de um lugar nem de outro, faz das suas quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo para o meu desassossego. Mas não me engano, escrevo, somo e a escrita segue, feita normalmente por um empregado deste escritório.


Bernardo Soares


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