Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

terça-feira, dezembro 19, 2006


Fragmento 46


eleio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade...
"Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura."
Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida.
Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

"Sou do tamanho do que vejo!" Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental Vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando.
"Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade largal aos grandes espaços da matéria vazia.
Mas recolho-me e abrando. "Sou do tamanho do que vejo!" E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.


Bernardo Soares


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