Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

domingo, dezembro 18, 2005


Fragmento 08



patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupação desconhecida em que não fala bem a alguém. Sim, mas por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?
O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a saudade que sei que hei-de ter então. Estarei sossegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um sossego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas daquelas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com a ralé dos que se julgaram génios e não foram mais que mendigos com sonhos, junto com a massa anónima dos que não tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escritório da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triunfos que não haveriam de ser meus.
O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo - estatura média, atarracado, grosseiro com limites e afeições, franco e astuto, brusco e afável - chefe, à parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão.
Será, talvez, porque não tenho próximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio ou quase creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.


Bernardo Soares


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