Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

sábado, junho 03, 2006


Fragmento 36


ão são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da vida. São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. E a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo - como Vieira disse que Sousa descrevia – o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.
Sim, a minha virtude íntima de ser frequentemente objectivo, e assim me extraviar de pensar-me, sofre, como todas as virtudes, e até como todos os vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim mesmo como é que me sobrevivo, como é que ouso ter a cobardia de estar aqui, entre esta gente, com esta igualdade certeira com eles, com esta conformação verdadeira com a ilusão de lixo de eles todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante todas as soluções com que a imaginação é mulher – o suicídio, a fuga, a renúncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada das existências sem balcão.
Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai dela; ele obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa - àquele quarto onde é sórdida a dona de casa que não está lá, os filhos que raras vezes vejo, a gente do escritório que só verei amanhã - com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas compradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente os charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me ter esquecido sempre do guarda-chuva e da dignidade da alma.


Bernardo Soares


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