Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

terça-feira, dezembro 19, 2006


Fragmento 51


céu negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das gaivotas em voo inquieto. O dia, porém, não estava tempestuoso já. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por sobre a outra margem, e a cidade baixa, húmida ainda do pouco que chovera, sorria do chão a um céu cujo Norte se azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da Primavera era levemente frio.

Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me conduzir voluntariamente o pensamento para uma meditação que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula, qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando por contraste o mistério de tudo em grande negrume.

Mas, de repente, em contrário do meu propósito literário íntimo, o fundo negro do céu do Sul evoca-me, por lembrança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão que imagino.

Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e angústias, as margens irregulares entram, como pequenos cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribeiras que têm água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes verde-negras dos juncos, por onde se não pode andar.

A desolação é de um céu cinzento morto, aqui e ali arrepanhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu. Não sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha longa, por detrás da qual se divisa - grande e abandonado rio! - a outra margem verdadeira, deitada na distância sem relevo.
Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria nunca. Esperaria em vão o que não saberia que esperava, nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite, tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens mais negras, que pouco a pouco se mergiam [sic]’ no conjunto abolido do céu.

E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no corpo, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma desconfiança de quem não sabe explicar. O céu negro, apertando-se, desceu mais baixo sobre o Sul.


Bernardo Soares


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