Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

terça-feira, dezembro 19, 2006


Fragmento 58


ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a intersecção de três linhas, e essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou escrevendo, é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que ser composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se reflectem, nela se inserem, e a transformam, os objectos em cuja justaposição ela tem alma externa, o que lhe está posto em cima. E a própria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem - tudo isso, repare-se, lhe veio de fora, e é isso que, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que é a personalidade.

Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objecto de uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio "corre", que um poente é magoado ou o mar calmo (azul pelo céu que não tem) é sorridente (pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e (9) longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranha conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.
Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura humidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.

Assim sou. Quando quero pensar, vejo.
Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido, no começo do espiral da escada profunda, vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados.


Bernardo Soares


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