Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

terça-feira, dezembro 19, 2006


Fragmento 67


uantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradável receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer coisa orgânica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos jardins.

Não sei que coisa estranha e pobre existe na substância íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização - uma modificação anónima da natureza. As plantas estão ali, mas há ruas - ruas. Crescem árvores, mas há bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancos são maiores e têm quase sempre gente.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o emprego público das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se as árvores crescessem sobre recantos feudais, se os bancos não tivessem alguém, haveria com que consolar-me na contemplação inútil dos jardins. Assim, na cidade, regrados mas úteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e das flores não têm senão espaço para o não ter, lugar para dele não sair, e a beleza própria sem a vida que pertence a ela.
Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragédia cómica. Nesses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo, sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa, lar, aonde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

Mas a ilusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite vem. E a cor das flores, a sombra das árvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então esqueço com os olhos a plateia amorfa e aguardo os primeiros actores com um sobressalto de criança no circo.
Estou liberto e perdido.
Sinto. Esfrio febre. Sou eu.


Bernardo Soares


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