Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

terça-feira, dezembro 19, 2006


Fragmento 69


hove muito, mais, sempre mais... Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...
Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido. Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.


Bernardo Soares


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