Livro do desassossego

Fernando Pessoa
Bernardo Soares(Fernando Pessoa)
«Quem sonhou todas estas ficções foi o passeante da Rua dos Douradores, um homem triste por não existir como se sonhava, irmão gémeo por dentro de Luís da Baviera, prisioneiro como ele de idênticos fantasmas. Enquanto se inventava poeta e nos sonhava mais angustiados do que somos, mais perdidos do que ele se sentia, mais tristes do que ele era, ia escrevendo como quem transcreve o sonho que o está sonhando, o livro do seu Desassossego. Não há na nossa literatura prosa mais luminosamente suicidária. Aí se despe da sua própria ficção oferecendo-se sem resguardas como órfão de tudo, excluído voluntário dos outros e da vida, sonhador de todos os sonhos, sobretudo dos improváveis.»
Aí está o retábulo da sua vera e incruenta paixão. É um retábulo simbolista, pouco conforma ao mito - Pessoa de um vanguardismo estridente e todo exterior, mas talvez esse mito seja mais do nosso engano do que da sua verdade. Toda a sua vida foi simbolista.Devolvamo-lo, pois, à sua dolorosa realidade de amante da Morte, de herói da impossibilidade de amar:

« Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
[ excerto do f.335 do L.D.] »

resenha por Eduardo Lourenço

quarta-feira, janeiro 25, 2006


Fragmento 29


epois que os últimos pingos da chuva começaram a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o azul do céu começou a espelhar-se lentamente, o som dos veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o abrir de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela rua estreita do fundo da esquina próxima, rompeu o convite alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja fronteira reverberaram pelo espaço claro.
Era um feriado incerto, legal e que se não mantinha. Havia sossego e trabalho conjuntos, e eu não tinha que fazer. Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade - gestos que me esquecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas firmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do meu simples isolamento.

A minha figura humana, se a considerava com uma atenção externa, era do ridículo que tudo quanto é humano assume sempre que é íntimo. Vestira, sobre os trajes simples do sono abandonado, um sobretudo velho, que me serve para estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a gente.

Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumulação da chuva ida. Ainda, vagos, havia frescores de haver chovido. O céu, porém, era de um azul conquistador, e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada cediam, retirando para sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos do céu todo.

Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.


Bernardo Soares



Fragmento 28



m hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.


Bernardo Soares



Fragmento 27


literatura, que é a arte casada com o pensamento e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.

Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.

Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos.

O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ter dito.


Bernardo Soares



Fragmento 26



ar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma.

Dobraram a curva do caminho e eram muitas raparigas. Vinham cantando pela estrada, e o som das suas vozes era felizes [sic]. Elas não sei o que seriam. Escutei-as um tempo de longe, sem sentimento próprio. Uma amargura por elas sentiu-me no coração.
Pelo futuro delas? Pela inconsciência delas? Não directamente por elas - ou, quem sabe? talvez apenas por mim.


Bernardo Soares



Fragmento 25


É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo. Na montra há outras e aquela. Está ao centro da montra do vão de escada.

Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes. Sorri com brilho do papel e as cores da sua face são encarnado, O céu por trás dela é azul de fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena. O braço que segura as flores lembra-me o de alguém. O vestido ou blusa é aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem é por isso. Separo-me de defronte da montra com uma grande violência sobre os pés. Atravesso a rua e volto-me com uma revolta impotente. Ela segura ainda a primavera que lhe deram e os seus olhos são tristes como o que eu não tenho na vida. Vista à distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor de mais rosa contornando o alto do cabelo; não tinha reparado. Há em olhos humanos, ainda que litográficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciência, o grito clandestino de haver alma. Com um grande esforço ergo-me do sono em que me molho e sacudo, como um cão, os húmidos da treva de bruma. E por cima do meu desertar, numa despedida de outra coisa qualquer, os olhos tristes da vida toda, desta oleografia metafísica que contemplamos à distância, fitam-me como se eu soubesse de Deus. A gravura tem um calendário na base. É emoldurada em cima e em baixo por duas réguas pretas de um convexo chato mal pintado. Entre o alto e o baixo do seu definitivo, por sobre 1929 com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o inevitável primeiro de Janeiro, os olhos tristes sorriem-me ironicamente.

É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No escritório há, no canto do fundo, um calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes.
Mas, por um mistério, ou oleográfico ou meu, a idêntica do escritório não tem olhos com pena. É só uma oleografia. (É de papel que brilha e dorme por cima da cabeça do Alves canhoto o seu viver de esbatimento.)

Quero sorrir de tudo isto, mas sinto um grande mal-estar. Sinto um frio de doença súbita na alma. Não tenho força para me revoltar contra esse absurdo. A que janela para que segredo de Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde dá a montra do vão de escada? Que olhos me fitavam na oleografia? Estou quase a tremer. Ergo involuntariamente os olhos para o canto distante do escritório onde a verdadeira oleografia está. Levo constantemente a erguer para lá os olhos.


Bernardo Soares



Fragmento 24


oje, como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse: "Até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras."
Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em maior intimidade, impropriamente dita...
A fraternidade tem subtilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia - não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo destes estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre- escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.


Bernardo Soares